Na semana do Remake de Vale Tudo, o autor do Livro “A Travessia da Terra Vermelha”, Lucius de Mello (famoso tembém por sua obra Eny E o Grande Bordel Brasileiro) reedita seu artigo: “Escrevi uma artigo sobre a leitura dramática que Beatriz Segall fez do meu livro A Travessia da Terra Vermelha (que conta a saga dos refugiados judeus de Rolândia - Paraná) . Foi o último trabalho de Beatriz como atriz um ano e cinco meses antes de morrer ! Ela reforça a luta contra o antissemitismo e a intolerância ! A notícia vale esta semana por conta da estreia do remake da Vale Tudo e da volta da vilã Odete Roitman.


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Outro olhar para Odete Roitman



 
Ver Odete Roitman mais perto da terra vermelha do Paraná do que dos salões elegantes
 
de Paris parece incoerente com a imagem que a vilã deixou na lembrança dos brasileiros.
 
Porém, essa “contradição” é legítima porque foi causada pela própria Beatriz Segall, atriz que
 
deu vida à personagem criada por Gilberto Braga em 1988, e que até a sua morte, em 2018,
 
nunca mais se livrou dela, carregando a malvada nas costas por cada pedacinho do Brasil e do
 
mundo onde fosse reconhecida pelos fãs. Impossível olhar para madame Segall sem avistar
 
Odete Roitman. Por essa razão, a imagem da megera ressurge sempre, mesmo quando sua
 
intérprete empresta sua voz e o seu talento para fazer uma boa ação, como, por exemplo, um
 
ato voluntário a favor das minorias e dos excluídos.


 
Refiro-me ao episódio em que Beatriz chamou nossa atenção para a crise global dos
 
refugiados — um dos maiores desafios contemporâneos dos líderes mundiais. Segundo a ONU,
 
nos primeiros meses deste ano, o número de pessoas forçadas a se deslocar de seus países —
 
para fugir de conflitos armados, violação de direitos humanos, perseguições e fome — chegou
 
a 139 milhões, provenientes sobretudo da África e da Ásia, e especificamente de regiões como
 
a Faixa de Gaza e o Oriente Médio como um todo, para citar alguns dos palcos geográficos
 
desse problema. Um verdadeiro caos planetário que teve na Segunda Guerra Mundial um dos
 
seus momentos mais sombrios.



 
“O nazismo foi uma coisa tão extraordinariamente trágica, que você não pode deixar de
 
se manifestar sempre que surge uma oportunidade. Porque você tem que lembrar para as
 
pessoas que é a História que faz o tempo, agora. O que aconteceu é o que nos faz ter em mente
 
o que poderá vir a acontecer. Eu acho que todas as vezes que há a possiblidade de você falar
 
disso, acho que é importante”. Esse discurso comprometido com o combate ao antissemitismo
 
e preocupado com o futuro da humanidade foi proferido por Beatriz Segall quando, com quase
 
91 anos, ela participou da leitura de fragmentos do meu livro A Travessia da Terra Vermelha
 
— uma saga dos refugiados judeus no Brasil (Companhia Editora Nacional), romance baseado
 
em documentos, fotografias, cartas, entrevistas e depoimentos. A narrativa resgata a história
 
dos refugiados judeus alemães salvos do horror nazista pela construção da ferrovia brasileira
 
que ligava São Paulo a Londrina, no Paraná. Ainda na Alemanha, as famílias judias compravam
 
trilhos para os construtores da estrada de ferro e, em troca, recebiam grandes fazendas no Brasil.



 
Dessa forma, conseguiram recomeçar a vida na zona rural de Rolândia, onde a terra é vermelha
 
devido à decomposição de rochas balsâmicas e lavas vulcânicas.
 
O grupo de sobreviventes era composto, sobretudo, por intelectuais que não tinham nada
 
a ver com terras, e que gostavam mesmo de frequentar teatros, museus e bibliotecas. Não por
 
acaso, os forasteiros transformaram o sertão paranaense num sertão ilustrado. Porém, acabaram
 
vizinhos de alemães nazistas em pleno interior do Brasil. Gente que celebrava o aniversário de
 
Adolph Hitler e espalhava o ódio contra os judeus. Meu livro publicou fotos inéditas de festas
 
hitleristas realizadas em Rolândia antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Beatriz Segall foi
 
tocada por essa história que ela ainda não conhecia.
 
Mesmo sem ter origem semita, a atriz entrou para uma família judia ao se casar com
 
Maurício Segall (1926-2017), filho de Lasar Segall (1889-1957), pintor, escultor e gravurista
 
judeu nascido no território da atual Lituânia. Um dos mais expressivos artistas-símbolo dos
 
judeus da Diáspora. Em nossa primeira conversa telefônica, Beatriz me falou do sogro e já se
 
interessou em conhecer meu livro; dias depois, aceitou o convite para ler fragmentos do
 
romance na noite de lançamento. Foi o último trabalho cênico dela. Um ano e cinco meses
 
depois, Beatriz Segall morreu vítima de problemas respiratórios.
 
A leitura dramática ocorreu na livraria Cultura no Conjunto Nacional em São Paulo em
 
26 de abril de 2017. Começamos a ensaiar vinte dias antes. Nos encontrávamos no apartamento
 
de Beatriz. Por vontade dela, começávamos a ler os trechos selecionados pouco depois do
 
horário combinado, às 19h30min. Quem abria a porta para me receber era uma simpática
 
enfermeira que ficava a noite toda ao lado da atriz. Havia outra cuidadora que passava o período
 
diurno. Pinturas de Lasar Segall disputavam espaço nas paredes. Entre elas, o retrato de Beatriz
 
roubava a cena. Passei por esse acervo valioso tomado por um contido deslumbramento.
 
Beatriz me esperava na sala de jantar, sentada à mesa com o livro aberto, uma régua e
 
um lápis à mão. “Preciso da régua para não confundir e pular as frases”, explicava, ajustando
 
os óculos. Repetia várias vezes a leitura, sugeria novos trechos e capítulos, fazia perguntas sobre
 
a vida dura que os refugiados judeus enfrentaram ao desbravarem a mata, queria saber mais
 
sobre o trem brasileiro que salvou a todos. Não demorava e logo éramos interrompidos com a
 
chegada do cafezinho acompanhado de deliciosos biscoitos mineiros. Hora de deixar o livro de
 
lado e relembrar os bons tempos da carreira e da vida da atriz.
 
No segundo ou terceiro dia de ensaio, ao ver a fotografia de Maurício Segall num porta-
 
retratos, perguntei à Beatriz como que ela tinha conhecido o seu grande amor. A resposta saiu
 
apressada, mal esperou que eu terminasse a questão. Odette Roitman ressurgiu, abruptamente,
 
no corpo já debilitado de sua talentosa intérprete. O gatilho foi disparado pela memória da
 
capital francesa: “Qual o único lugar no mundo onde um grande amor de verdade pode
 
começar? Claro, meu bem, foi em Paris! Eu e Maurício nos apaixonamos em Paris. Amigos em
 
comum nos apresentaram. Foi amor à primeira vista, c'était le coup de foudre!”
 
. Não tive
 
dúvidas: Odete Roitman estava ali ao meu lado! Só faltou ela dizer, tal qual em Vale Tudo:
 
“Paris é minha pátria — como, aliás, é a de toda pessoa civilizada”. Porém, o repentino ataque
 
de madame Roitman se resumiu à nostálgica declaração de amor.
 
Na noite de lançamento do livro chovia bastante em São Paulo. Estávamos no meio do
 
outono e a temperatura começava a despencar. Os convidados ansiosos, a livraria quase lotada,
 
mas ainda não podíamos começar porque a estrela não havia chegado. Foram momentos de
 
tensão! Será que Beatriz Segall viria mesmo, como o combinado? Teria lhe ocorrido algum
 
problema de saúde ou, quem sabe, outra recaída de Odete Roitman? Finalmente, consegui
 
telefonar ao seu apartamento. Uma funcionária me garantiu que ela já estava a caminho do
 
evento. “A chuva deve ter congestionado o trânsito, calma que ela vai chegar”, profetizou, como
 
se estivesse fazendo uma oração. Passados mais de quarenta minutos da hora marcada, a atriz
 
surgiu, deslumbrante, usando um casaco de pele e um colar de pérolas. A joia iluminava os tons
 
sublimes daquele figurino que conseguiu chegar intacto, passar ileso à tempestade. Beatriz
 
caminhou lentamente apoiada na inseparável enfermeira. Cumprimentou a todos e sentou-se no
 
palco improvisado sob a escultura mobiliária Dragão feita em madeira. Ao nosso lado, estavam
 
Angélica Marion Rosenthal, João Paulo Schauff e Mariane Kaphan, filhos e netos dos
 
refugiados que testemunhariam o drama de suas famílias.
 
Mesmo com a voz fragilizada, a eterna Odete Roitman brilhou intercalando a leitura do
 
livro com os depoimentos dos descendentes das famílias perseguidas pelo nazifascismo. Tudo
 
foi gravado, roteirizado e transformado num documentário de dezoito minutos. O filme também
 
foi editado com imagens originais da chegada ao refúgio tropical captadas pelos próprios
 
sobreviventes da Shoah. Legendado em inglês, está disponível na internet:
 
 
No final, Beatriz Segall sinalizou: diante de fenômenos políticos que cometem crimes
 
contra a humanidade, é preciso mostrar ao mundo que não Vale Tudo! A intérprete da megera
 
que retorna à televisão brasileira nos próximos dias, pelo menos, para todos ali presentes na
 
livraria, conseguiu estilhaçar a imagem fria e perversa da vilã que tanto a marcou ao longo de
 
todos esses anos. Impossível, agora, não lançarmos um novo olhar para a atriz e sua personagem
 
depois de vê-las, poeticamente, com os pés na terra vermelha do Paraná, embarcando naquele
 
trem salvador para iluminar um trágico episódio da História que jamais poderá ser esquecido.



 
 
 
Lucius de Mello é doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université - Paris. Autor da tese A
 
Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor e finalista do Premio Jabuti de 2003.







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